O presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará (SimeC) é o médico e
ex-vereador José Maria Pontes. Ele liderou o protesto contra médicos cubanos
ocorrido na terça-feira (27) em Fortaleza. Cobrado pela violência do ato, vem
dizendo que “Ninguém vaiou médico cubano, mas quem estava com eles”. E que a
vaia só ocorreu porque “Não dava para não misturar se estava todo mundo junto”.
O sindicalista ainda garantiu à imprensa que “A vaia, na verdade, foi para aquelas
pessoas que tiveram a ideia absurda de trazer esses médicos para cá, inclusive
com trabalho escravo sem nenhum compromisso a não ser com o compromisso
ideológico do Partido dos Trabalhadores”.
A declaração de Pontes se deu no âmbito de críticas aos médicos, militantes
políticos e sindicalistas cearenses que vaiaram os médicos cubanos, críticas
que foram feitas por entidades médicas e sindicais do próprio Ceará, pela
imprensa e pelas redes sociais.
Diante de fato como esse, o Blog decidiu entrevistar o presidente do SimeC.
Este blogueiro encontrou Pontes em seu celular, em Brasília, preparando-se para
voltar ao Ceará. Confira, abaixo, a conversa (gravada) com a pessoa que liderou
a manifestação que xingou médicos cubanos negros de “escravos” e “incompetentes”.
Blog da Cidadania – Senhor José Maria Pontes, o senhor é presidente do Sindicato dos
Médicos do Ceará, certo?
José Maria Pontes – É.
Blog da Cidadania – Sr. José Maria Pontes, sobre esse caso do ato do seu sindicato
contra os médicos cubanos, o senhor deu uma declaração de que as vaias e tudo
mais que foi feito ali não teria sido contra eles.
José Maria Pontes – Não, na realidade, pra que as pessoas
entendam, nunca ninguém teve intenção de atingir os médicos, porque naquela
manifestação os médicos cubanos que chegaram ao Ceará foram recepcionados pelo
Ministério da Saúde. O Odorico, que é representante do Ministério, é cearense.
O ato foi feito contra essa postura [do Ministério da Saúde] de trazer os
médicos cubanos sem o Revalida. A nossa manifestação tinha uns 70, 80 médicos.
Inclusive barraram a nossa entrada na Escola de Saúde Pública e nós ficamos do
lado de fora com carro de som, fazendo manifestação e quando eles [os médicos
cubanos] saíram, realmente levaram uma bruta vaia.
Quer dizer, não os médicos, né… Foi direcionado ao Odorico, porque ele saiu
cercado por médicos [cubanos], como se estivesse protegido. E tudo foi
direcionado a ele. Inclusive, né, a…
Blog da Cidadania – Quando fala em Odorico, o senhor se refere a quem?
José Maria Pontes – Odorico Monteiro é o representante do
Ministério da Saúde. É cearense e é uma das pessoas responsáveis por essa
situação…
Blog da Cidadania – Senhor José, desculpe-me por interrompê-lo, mas há uma foto que
circulou muito na internet e na imprensa em que um desses médicos cubanos está
sendo vaiado por jovens médicas do seu sindicato. Elas estão gritando com as
mãos na boca perto do rosto dele.
Havia, também, gritos de que os médicos seriam escravos. Foram ouvidos
reiteradamente durante o protesto. Inclusive…
José Maria Pontes – Vamos, vamos, vamos…
Blog da Cidadania – Um minutinho, senhor José, deixe-me só terminar essa pergunta,
porque as pessoas estão querendo entender o que de fato aconteceu.
Então veja, os manifestantes gritaram que os médicos cubanos seriam “escravos”.
As vaias foram gravadas em vídeo e o que se vê nesse vídeo é que foram
dirigidas diretamente aos médicos.
O que o senhor pode me dizer sobre essa contradição? O senhor afirma que as
vaias não foram dirigidas aos médicos cubanos, mas o vídeo mostra outra coisa.
E ainda há um outro componente um pouco doloroso nisso tudo, senhor José Maria,
porque havia muitos médicos cubanos negros, ali, e chamá-los de “escravos” é
uma associação que muitas pessoas viram como racismo…
José Maria Pontes – Então deixa eu contar.
Blog da Cidadania – Pode falar, por favor.
José Maria Pontes – Quando nós estivemos lá, fazendo manifestação,
eles [os médicos cubanos e o representante do Ministério da Saúde] fecharam a
porta e foram fazer a manifestação deles lá dentro…
Blog da Cidadania – Perdão, mas não estavam fazendo “manifestação lá dentro”, estavam
recebendo treinamento…
José Maria Pontes – Nós ficamos lá fora fazendo manifestação
contra eles. Uma das coisas que foi mais debatida, lá, foi a história do
trabalho escravo, né, no sentido de eles não terem direito a férias, 13º
salário, a hora-extra e não ter direito a casar nem a namorar no Brasil
Blog da Cidadania – Epa! Proibição de se relacionar com brasileiros?
José Maria Pontes – É, porque…
Blog da Cidadania – Perdão de novo: de onde o senhor tirou essa informação?
José Maria Pontes – Essa informação todo mundo sabe, circula,
porque é o seguinte, só pra você entender: se o médico tiver um filho com
brasileiro ele adquire, naturalmente, a nacionalidade [brasileira] e o que se
comenta – que parece que é verdade – é que eles querem que os cubanos voltem
pra lá, porque se eles [os cubanos] pedirem asilo político no Brasil eles [o
governo] não vão dar…
Blog da Cidadania – Ok, senhor José Maria, mas espere aí: como é que se vai impedir
alguém de ter relacionamentos amorosos, por aqui? Suponhamos que um médico vê
uma brasileira bonita na rua, começa a namorá-la, ela engravida… Enfim, como é
que o governo brasileiro ou o cubano vão impedir que isso aconteça?
José Maria Pontes – Pois é, é isso que estou falando…
Blog da Cidadania – Então não pode existir essa proibição…
José Maria Pontes – Eles não querem que o médico cubano tenha
filho com a mulher brasileira porque aí adquire nacionalidade e os médicos vão
acabar ficando aqui…
Blog da Cidadania – Mas, repito, de onde o senhor obteve essa informação, senhor José
Maria?
José Maria Pontes – Ah, essa informação circula há muito tempo,
né…
Blog da Cidadania – Mas, aí, não significa que seja verdadeira…
José Maria Pontes – Eeehh… Inclusive na Venezuela, tá! Isso aí [a
suposição] aconteceu [sic] porque os médicos venezuelanos, com essa história de
não poder sair a partir das 18 horas – e se tiver que sair tem que prestar
contas pra uma pessoa de Cuba –, faz a gente pensar assim…
Mas eu vou lhe responder a outra pergunta, né. O médico, o que ficou colocado
foi essa questão do trabalho escravo. Até, ontem, a Fenam [Federação Nacional
dos Médicos] entrou com uma representação, né, no Ministério Público do
Trabalho sobre a questão trabalhista.
Eles [os médicos cubanos] vão ser utilizados para trabalho escravo. E o que
aconteceu, então, não foi no sentido pejorativo, de chamá-los de negros. O que
ficou colocado é que a gente estava dizendo para eles que eles iam exercer
trabalho escravo…
Blog
da Cidadania – Mas senhor José Maria…
Primeiro que chamá-los de negros, tudo bem. Afinal, eles são negros mesmo e ser
negro não é “pejorativo”.
José Maria Pontes – O que foi chamado [sic] é que eles querem
associar a um sentido pejorativo, mas foi no sentido de ter o trabalho dele não
do jeito que vem, porque do jeito que eles estão postulando… Porque, veja bem,
os médicos que vêm da Argentina vão receber, diretamente, dez mil reais, que
não é salário, é bolsa. Então eles [os médicos cubanos] não têm nenhum direito
trabalhista.
Blog da Cidadania – Desculpe interrompê-lo, mas eu não consigo entender. Se eu chamo
alguém de escravo, estou xingando. Porque se chamassem o Odorico [representante
do MS] de feitor de escravos, até se poderia entender que o insulto foi para
ele, mas quando chamam os médicos cubanos de escravos, isso é um insulto. Além
disso, o escravo não tem culpa de ser escravo. Não pode ser vaiado por sua
escravidão…
José Maria Pontes – Não, não, não foi nesse sentido. Foi no
sentido de chamar a atenção…
Blog da Cidadania – Deles?!
José Maria Pontes – Não, não foi nesse sentido…
Blog
da Cidadania – Vou reformular a pergunta: o
senhor não se ofenderia se chegasse em um determinado local e uma pequena
multidão o chamasse de escravo?
José Maria Pontes – Eu quero te garantir que o que foi colocado
foi não aceitar que essas pessoas sejam usadas em trabalho escravo.
A nossa orientação, do sindicato, foi nesse sentido, que os
manifestantes chamassem a atenção para a questão do trabalho escravo.
Foi, então, uma palavra de ordem, não no sentido pejorativo. Foi pra chamar a
atenção deles de que iam exercer o trabalho escravo.
Blog da Cidadania – Isso o senhor já me explicou. Mas fico com uma dúvida quando o
senhor fala em trabalho escravo. Pelo seguinte: o acordo feito entre o governo
brasileiro e o governo cubano é semelhante aos acordos que a Organização
Pan-americana de Saúde – a entidade de saúde mais antiga do mundo – fez com 58
países.
Não fica uma coisa meio estranha que 58 nações e mais o governo brasileiro
estejam promovendo o trabalho escravo? Além do que, trabalho escravo, pelo que
se entende, depende de condições degradantes de alojamento, alimentação,
pagamento e, até agora, não existe nenhuma evidência de que isso esteja
acontecendo.
Minha questão, portanto, é: 58 nações, mais o governo da República Federativa
do Brasil, mais a organização de saúde internacional mais antiga do mundo
(fundada em 1902) iriam promover o trabalho escravo no Brasil e no mundo,
senhor José Maria?
José Maria Pontes – Estranho, né? Mas é verdade.
Blog da Cidadania – Estranho, não: fantástico.
José Maria Pontes – Quando você diz que a pessoa vai trabalhar,
ela tem direito a salário. Eles [os médicos cubanos] vão receber uma bolsa. Não
vão ter 13º salário, não vão ter direito trabalhista nenhum, porque é bolsa,
né…
Quando você limita para que ele [o médico cubano] não possa sair de determinada
área… Foi assim que aconteceu com os médicos cubanos na Bolívia e na Venezuela.
Há depoimentos. E eles também não podem trazer a família deles.
Eu vi a entrevista de uma médica da Espanha, ela pode trazer a família dela.
Eles [os médicos cubanos] não podem.
Quer dizer, quem está dando as ordens não é o governo brasileiro, é o governo
cubano.
E essa coisa da OPAS foi só uma coisa… Uma bijuteria, foi só pra enfeitar, para
dizer que foi uma coisa oficial, tal…
Blog da Cidadania – Ora, mas não é “para dizer que foi uma coisa oficial”. O acordo
foi feito entre o governo brasileiro, o cubano e a OPAS. Não é uma “bijuteria”,
é um acordo formal. Inclusive, o portal UOL publicou esse acordo, um tipo de
acordo que é feito com a entidade por dezenas e dezenas de nações do mundo
inteiro e o regime legal pelo qual esses médicos trabalharão no Brasil, até o
momento, recebeu todo o aval da Justiça.
Então eu lhe pergunto: se a Justiça e o Ministério Público não encontrarem
qualquer irregularidade nesse acordo, como é que fica uma manifestação e um
discurso que GARANTEM a todos que está sendo implantando o trabalho escravo na
medicina brasileira?
Ficaríamos assim: o governo brasileiro, a Justiça brasileira, o Ministério
Público brasileiro, a OPAS e mais 58 nações estariam envolvidos com exploração
de trabalho escravo, senhor José Maria? Isso não lhe parece uma sandice?
José Maria Pontes – É porque, até agora, ninguém teve acesso ao
acordo do Brasil com a OPAS e o governo cubano. E estamos pedindo ao Ministério
Público do Trabalho para que analise esse contrato, né, para ver se não existe
trabalho escravo…
Blog da Cidadania – Sim, mas querer saber…
José Maria Pontes – Deixa eu falar, senão você fala, fala e não
vai entender…
Blog da Cidadania – Ok, senhor José Maria. Pode falar, então.
José Maria Pontes – O que estou querendo dizer é que nós não temos
nada contra os médicos. Foi uma manifestação contrária ao representante do
ministério da Saúde. Eles [o governo Dilma] utilizou aquilo ali politicamente,
para tirar proveito porque eles são poderosos, eles têm dinheiro, eles têm o
poder da máquina estatal, mas não somos contra a vinda de médicos cubanos.
Não saiu em imprensa nenhuma, mas nós colocamos, várias vezes, que os médicos
cubanos são bem vindos ao Brasil, mas queremos que eles tenham todas os
direitos trabalhistas e tenham liberdade de ir vir. Mas ao governo não
interessa, né, divulgar essas coisas.
Blog da Cidadania – Ok, senhor José Maria, mas a forma dessa manifestação não me
parece correta. Eu lhe pergunto uma coisa: se o senhor fosse um daqueles
estrangeiros e, chegando ao Brasil, encontrasse uma turba gritando, chamando-o
de escravo, o senhor se sentiria bem vindo?
José Maria Pontes – Veja bem, quando se colocou essa questão não
foi com a conotação que querem dar. Dissemos escravos foi no sentido inclusive
de defender os interesses deles…
Blog da Cidadania – Espere aí: então a manifestação que foi feita com vaias e
chamando-os de escravos foi para defendê-los?! De quem, deles mesmos? Porque,
até onde se sabe, eles estão de acordo com tudo.
José Maria Pontes – Não, não foi a questão de defendê-los, foi
para defender as condições de trabalho deles…
Blog
da Cidadania – Mas o senhor não acha que a
opinião deles também conta? Essas pessoas estão fora do país delas e, se
estivessem sendo submetidas a trabalho escravo, poderiam muito bem, estando em
território estrangeiro, denunciar e pedir asilo político dizendo ao governo
brasileiro “Olha, estou sendo escravizado, me dê asilo”…
Eu digo isso, senhor José Maria, porque nunca vi um escravo que gostasse de ser
escravo.
Aliás, muito pelo contrário, os médicos cubanos têm dado declarações no sentido
de que estão muito satisfeitos por estarem aqui, de que não visam somente dinheiro
porque o Estado cubano lhes deu a formação que têm, deu assistência médica,
educação, moradia, alimentação a eles e às suas famílias. Então, trata-se de
uma realidade diferente da nossa.
A questão que surge, portanto, é sobre como pode o sindicato do senhor querer
defender os médicos contra a própria vontade deles.
José Maria Pontes – É, mas, veja bem, não é defender os médicos, é
a questão do trabalho escravo independentemente da vontade de quem está sendo
submetido a trabalho escravo.
Cuba é um país extremamente pobre. Ora, pra você formar um médico
é difícil e Cuba exporta milhares de médicos para Venezuela, para a Bolívia… No
Brasil, no segundo país que mais forma médicos, você não tem condição de formar
tantos médicos para exportar.
Blog da Cidadania – Mas acontece, senhor José Maria, que, em Cuba, o ensino é
gratuito. É difícil formar médicos no Brasil porque as faculdades privadas
custam uma fortuna e para entrar nas públicas tem que estudar em escolas caras,
cursinhos caros e poucos têm condições.
José Maria Pontes – É que precisa uma escola equipada, com bons
profissionais…
Blog da Cidadania – E o senhor acha que não tem isso em Cuba? Porque seus indicadores
de saúde são muito superiores aos nossos. Expectativa de vida, mortalidade
infantil… Aliás, a mortalidade infantil em Cuba é menor do que a dos Estados
Unidos.
José Maria Pontes – Veja bem, eeehh… Em Cuba você não tem a
violência que tem no Brasil e o trabalho que eles fazem, que todo mundo
comenta, é que esses profissionais não são médicos, eles são formados num nível
intermediário para trabalhar no interior…
Blog da Cidadania – Ah, o senhor me desculpe, mas os currículos desses médicos foram
divulgados. A maioria é versada em mais de uma especialidade. Todos têm mais de
uma década de experiência na profissão. Como não são médicos?
José Maria Pontes – Não, não, eles não são médicos de verdade,
eles são formados em atenção básica…
Blog
da Cidadania – Qual é a fonte da sua
informação, porque diverge do que vem divulgando o Ministério da Saúde.
José Maria Pontes – Não, não, eles são só médicos de atenção
básica…
Blog da Cidadania – Então agora são médicos? E apesar de seus currículos dizerem que
não são formados só em atenção básica… Até porque, mesmo o maior especialista
de Cuba é formado, também, em atenção básica, ou em saúde da família. É a lei
de lá.
José Maria Pontes – Olha, eu vou ter que viajar. Meu avião está
saindo.
Blog
da Cidadania – Ok, senhor José Maria Pontes. (...)
Do site – www.conversaafiada.com – Publicado em
29.08.2013
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