O novo estado de
exceção
Por Lindbergh Farias (*)
“A tradição dos oprimidos
nos ensina que o estado de exceção em que vivemos é na verdade regra geral.
Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade”-
Walter Benjamin
O jornal Folha de São Paulo de
terça-feira (18/10) da semana passada publicou, com grande repercussão nacional
e internacional, um artigo de defesa do ex-presidente Lula das falsas acusações
contra ele assacadas. Trata-se de uma peça brilhante de defesa de um grande
brasileiro. Lá estão devidamente elucidados todos os fatos atinentes aos
processos contra ele movidos por seus adversários. O artigo - na verdade uma
Carta Aberta - encerra com um veredicto gravíssimo. Segundo o artigo, os
processos contra Lula são um sintoma da “sombra do estado de exceção que vem se
erguendo sobre o país”. Exagero?
Talvez não. A questão do estado
de exceção não é nova na teoria política e no direito. Contudo, o mais
terrível, neste século XXI, a sombra do estado de exceção retornou de modo
inédito e inusitado. Tome-se o exemplo do Brasil. Antes, no Estado Novo de
Vargas (1937-1945) e no golpe militar de 1964, a nova ordem se instaurava e
logo cuidava de preparar todo um novo aparato de leis instituintes, na forma da
chamada constituição “polaca” do Estado Novo e dos atos institucionais dos
militares.
Ou seja, se antes a exceção se
generalizava nos episódios de instauração de regimes autocráticos e ditaduras
militares - sendo portanto de mais fácil identificação -, atualmente, não tem
sido mais necessário haver a interrupção abrupta e formal dos institutos
universais do Estado de Direito para que a exceção possa se ir se generalizando
e molecularmente ganhando espaços no aparelho de Estado e na sociedade
civil.
Ainda mais: estado de exceção
pode casar muito bem com golpes parlamentares, a exemplo do aplicado por Temer,
um golpe “líquido", por dentro da aparente "normalidade"
institucional do sistema político.
Alerta o filósofo italiano
Giorgio Agamben que a “exceção" vem se tornando a “regra”. Ou seja, o
“Estado de Exceção” vem se configurando a cada dia como o paradigma de governo
dominante no mundo de hoje. Não há mais a interrupção do antigo Estado
democrático para a instauração de um Estado de exceção.
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Agamben analisa o caso da
política de relações internacionais dos Estados Unidos, cujo fulcro de poder
reside nas intervenções militares, à exemplo do Afeganistão e do Iraque,
política que lhe garante o objetivo poder de polícia, de autêntico gendarme
global. De onde provém este poder? Da, por assim dizer, “suspensão legal” do
princípio do direito internacional de não intervenção em estados soberanos pela
“exceção” - uma espécie de “licença” para poder exercer o papel de polícia do
mundo.
Como exemplo de “exceção"
americana vale remeter aos usos e abusos do USA PATRIOT Act - editado em 26 de
Outubro de 2001, na sequência da reação ao ataque às Torres Gêmeas -, no qual o
exercício da força do Estado por um poder soberano “suspende" os direitos
civis de pessoas supostamente suspeitas de terrorismo, sem necessidade de haver
qualquer autorização da Justiça, como também o tratamento pelo avesso de
párias-não-cidadãos concedido aos estrangeiros prisioneiros de Guantánamo.
Desta maneira, a exceção vem a
ser uma verdadeira técnica de poder dos governos, que nem só explica o poder de
polícia dos Estados Unidos no mundo, mas também as ações dos agentes públicos -
inclusive do poder judiciário - portadores da atribuição de “soberania”, ou
seja, com poder de decisão no Estado de Direito. Para estes casos, ditos
extraordinários, portanto, o poder da decisão está acima da lei ou a
norma.
Mas aonde ficam, neste caso, os
regramentos do devido processo legal? Outro autor italiano, Michele Tartufo,
estudou ritos processuais em que as provas não servem para nada, processos nos
quais as provas são absolutamente irrelevantes. O impeachment recente da
presidenta Dilma foi um desses processos “tartufianos”. Todos sabem, Urbi et
Orbi, que não ficou provado nos autos do processo que Dilma cometeu crime de responsabilidade.
Pior, todos os julgadores daquele processo - os senadores investidos da
condição de juízes - já sabiam de antemão como votar e não estavam nas sessões
do impeachment para formar convicção.
Neste interim, cabe indagar se os
processos movidos contra o ex-presidente Lula não seriam um índice entre
outros, um exemplo mais rumoroso, do perigo da montagem de um estado de exceção
no Brasil. A indagação é pertinente e tem evidente interesse geral. A questão
não diz respeito somente a Lula ou mesmo ao PT, mas a todos os cidadãos
brasileiros.
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Pelo fato de ter sido um dia
presidente da República, o mais alto cargo do Estado, pode aparentar ao senso
comum que Lula tratar-se-ia de um homem “acima da lei”. Pelo contrário, devido
a total falta de evidências consistentes, nos três processos nos quais eles se
tornou réu, parece, hoje, que Lula se encontra “aquém da lei”. Igualmente, a
ex-presidente Dilma, no caso do recente impeachment - quando não ficou provado
crime de responsabilidade -, esteve “aquém da lei”.
Deixem-me retornar à teoria do
estado de exceção. A exceção, inclusive no âmbito jurídico, trabalha com uma
lógica política de amigo-inimigo, formulada durante a crise da República de
Weimar que resultou na ascensão do nazismo, pelo jurista alemão de direita Carl
Schmitt.
Para esta visão, da qual Agamben
faz a crítica negativa, uma disputa política só se resolve pela eliminação do
adversário. Não há possibilidade de acordo, de trégua política, nem de respeito
ao outro, mas a apenas a possibilidade de manifestar a intolerância. Na
história do Brasil, eventos como a campanha do “Brasil, ame-o ou deixe-o” na
década de 1970, ou até a surpreendente campanha publicitária do golpista Temer
de “vamos tirar o Brasil do vermelho” operam através da lógica política
amigo-inimigo.
Parece, no âmbito da operação do
direito brasileiro, que várias práticas forenses de acusação vêem
reintroduzindo perigosamente lógicas semelhantes a do amigo-inimigo
schmittiano, uma das quais identificada pela defesa do ex-presidente Lula como
"métodos de lawfare”, ou seja, de "uso das leis e dos procedimentos
jurídicos como arma de guerra para perseguir e destruir o inimigo”.
Tudo isso é bonito em teoria, mas
como demonstrar a questão da exceção nas práticas forenses?
Pois bem, exatamente a questão da
exceção na Lava Jato foi o objeto de decisão de uma instrutiva reunião recente
(22/9) do Pleno do Tribunal Regional Federal da 4a Região (Porto Alegre).
A ordem do dia era um recurso da
defesa de Lula, antes negado pela Corregedoria-Regional, de "instauração
de processo administrativo disciplinar contra o juiz federal Sérgio Fernando
Moro” e "afastamento cautelar do mesmo magistrado até a decisão final do
processo disciplinar”. O motivo da representação dos advogados foi divulgação
ilegal por Moro - reconhecida a posteriori pelo Ministro Teori Zavascki
(relator no Supremo da Lava Jato) - dos áudios de conversas entre a
presidenta Dilma e o ex-presidenta Lula.
Por treze votos a favor e um
contrário (Rogério Favreto), o Pleno do TRF/4 (Porto Alegre) aprovou o parecer
do desembargador federal Rômulo Pizzolatti. Os argumentos do Acordão são de que
"é sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da
chamada 'Operação Lava-Jato', sob a direção do magistrado representado, constituem
caso inédito (único, excepcional) no direito brasileiro. Em tais condições,
neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico,
destinado aos casos comuns”.
Importante observar, pois a
questão é estratégica, que o relator é totalmente consciente de estar abrindo,
neste caso, uma exceção. Para ele, veja-se, “a norma jurídica incide no
plano da normalidade, não se aplicando a situações excepcionais”. O relator
busca fundamentar o conceito de exceção citando de Eros Grau e também de
Agamben. O inusitado é que a diligência de Agamben é de crítica teórica
negativa, ao passo que o acórdão sustenta um registro positivo da
exceção.
Por seu turno, ao assinar o único
voto contrário, o desembargador Rogério Favreto declarou que “o Poder Judiciário
deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais, sobretudo naquilo em
que consagram direitos e garantias fundamentais (…) Sua não observância em
domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de
exceção, pode ser temerária se feita por magistrado sem os mesmos compromissos
democráticos do eminente relator e dos demais membros desta corte”.
Felizmente, ainda há juízes em
Berlim.
(*) – Lindbegh Farias é
Senador pelo PT do Rio de Janeiro. Artigo publicado em 28/10/16, em Brasil 247
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