Na base, cresce apoio da Igreja à greve geral
Por Paulo Moreira Leite (*)
Faltando dois dias para a greve geral em defesa dos direitos dos
trabalhadores, lideranças da Igreja Católica têm multiplicado gestos que
confirmam um engajamento cada vez maior no apoio a mobilização marcada para 28
de abril. Ao lado das palavras cuidadosas de dom Leonardo Steiner, secretário
geral da CNBB, em entrevista publicada no site da CNBB, manifestando simpatia
aberta pelas reivindicações mas sem assumir o compromisso formal de
apoio a greve, uma parcela crescente da hierarquia católica têm contribuído
para ampliar a resistência popular contra mudanças que ameaçam direitos e
conquistas históricas da população.
Na mais recente manifestação, na tarde de ontem, as Irmãs
Missionárias do Sagrado Coração de Jesus divulgaram em São Paulo um comunicado
no qual informam com todas as letras "nossa adesão à paralisação nacional
a ser realizada no dia 28 de abril," em apoio às reivindicações
"contra a Reforma da Previdência, Reforma Trabalhista e o Projeto de
Terceirização aprovado pela Câmara de Deputados, " pontos que sintetizam o
cada vez mais precário equilíbrio do governo Temer. Não é só. Quem se der ao
trabalho de assistir e compartilhar os vídeos gravados por dom Anuar Battisti,
arcebispo de Maringá, dom Manoel Delson, arcebispo de Campina Grande, e dom
Gilberto Pastana, do Crato, que convocam a população a participar da greve
geral desta sexta-feira, terá oportunidade de testemunhar um momento particular.
É preciso retornar aos livros que relatam os momentos mais duros
da resistência à ditadura militar de 1964 para encontrar um engajamento tão
profundo da hierarquia católica numa questão que ocupa o centro do debate
político e exprime o difícil. No mais tradicional evento do universo católico,
as missas de domingo, a pregação de padres contra as reformas da agenda
Temer-Meirelles tornou-se assunto obrigatório, o que têm preocupado as
lideranças do governo -- receosas da conta a ser cobrada pelo eleitorado --
como o senador Garibaldi Alves (PMDB-RN), que chegou a discutir o assunto com o
presidente.
O desastrado convite levado por João Dória ao Papa Francisco para
um encontro de Sua Santidade com Temer explica-se neste contexto. Integrado à
linhagem conservadora católica que chega a Opus Dei, adversária frontal do Papa
e das mudanças que têm promovido na Igreja, Temer dispõe de inúmeros
instrumentos de negociação e mesmo de pressão do Estado brasileiro para fazer
tratativas com o Vaticano. Já a negativa de Francisco à oferta se
compreende pelo momento político -- ainda que o sentido seja oposto. Com
um reconhecido sentido político, o papa não pretende tomar qualquer iniciativa
que possa servir de conforto a uma causa que considera prejudicial as maiorias.
"Tenho muita experiência na luta popular," afirma
Gilberto Carvalho. Formado em círculos operários católicos antes de se tornar
uma liderança do Partido dos Trabalhadores e ministro dos governos Lula e
Dilma, ele disse ao 247 que "em tempos recentes não me lembro da Igreja
mostrar um engajamento tão pesado." Há duas semanas, esse engajamento
assumiu um caráter mais organizado. Numa conversa que durou 40 minutos, dom
Leonardo Steiner, secretário-geral da CNBB, recebeu as principais lideranças da
greve geral, num conjunto que foi da CUT à Com lutas, o MST e o MTST, além da
CTB. "A postura de dom Leonardo foi de acolhimento," resume um dos
presentes.
Na década de 1970, quando a Igreja passou a se opor à mesma
ditadura que havia ajudado a construir em 1964 através das Marchas com Deus
pela Família e pela Liberdade, peça fundamental do golpe que derrubou João
Goulart, a ruptura ocorreu em função de uma prática intolerável -- a tortura e
execução de presos políticos. Foi a partir da denúncia incansável destes crimes
que, numa sequência de atos de grande coragem, dom Paulo Evaristo Arns e outras
lideranças uniram-se ao movimento operário, à luta dos estudantes e da
população carente para colocar o regime contra a parede, forçando a porta de
saída. No Brasil de 2016-2017, não se cometeu o mesmo erro de meio século atrás.
Em tom moderado, mas com palavras firmes, a CNBB condenou o golpe
contra Dilma, já na fase de preparativos. Em abril, logo depois que, num
domingo tenebroso, a Câmara de Deputados aprovou o afastamento da presidente, o
Premio Nobre da Paz Adolfo Perez Esquivel, uma espécie de embaixador moral do
Vaticano de Francisco, esteve no país para trazer uma mensagem. Denunciou o
"golpe branco" -- querendo dizer que, mesmo sem derramamento de
sangue nem tanques nas rua, havia ocorrido uma ruptura institucional grave e
inaceitável.
Parte da postura da hierarquia da Igreja diante da greve geral
pode ser explicada pela pequena revolução interna que o Papa Francisco tem
promovido desde que foi escolhido para o lugar de Bento XVI. Primeiro papa com
uma atuação indiscutivelmente progressista desde o fim do pontificado de João
XXIII, encerrado em 1963, a simples escolha de Jorge Mario Bergóglio
implicou num fato relevante para o que se vê nos dias de hoje, na eterna
disputa política que também marca a vida cotidiana de padres e bispos brasileiros.
Sua candidatura foi pavimentada pela derrota acachapante da facção
ultra-conservadora do clero, que tentou suas chances com o nome de dom Odilo
Scherer, cardeal de São Paulo, descartado logo na primeira rodada.
Quatro anos depois, Francisco é uma liderança reconhecida como
poucas num mundo que não cessa de produzir manifestações cada vez mais
frequentes de desgoverno. Tem um papel inegável, dentro e fora da Igreja, por
sua capacidade de expressar as angústias e o sofrimento daquela imensa parcela
da humanidade excluída da globalização e cotidianamente abandonada pelos
profetas mais festejados do mercado e do Estado Mínimo.
Entre muitos outros efeitos, a presença de Francisco no Vaticano
funciona como uma "cobertura moral e eclesiástica" -- a definição é
de Gilberto Carvalho -- para o engajamento da CNBB ao lado dos sindicatos, que
inclui até a assinatura de uma nota conjunta, divulgada em 19 de abril, ao lado
da OAB e do Conselho Nacional de Economistas, fato raro em sua história.
Dizendo que a "sociedade brasileira deve estar atenta as ameaças de
retrocesso," as três entidades dão um destaque particular ao projeto de
reforma da Previdência, dizendo que "não pode ser aprovada apressadamente,
nem pode colocar os interesses do mercado financeiro e as razões de ordem
econômica acima das necessidades da população".
A causa principal desse comportamento é interna. Envolve o
desempenho ruinoso do governo Temer, sintetizado pela implacável rejeição de
79% dos brasileiros. Mais uma vez na visão de Gilberto Carvalho, é "a
radicalidade das mudanças que Temer quer impor " que explica o engajamento
firme da CNBB. Mesmo num país já desigual e com tantas carências como o Brasil,
maioria da população corre o risco de ser submetidas a degraus ainda mais
dolorosos de sofrimento e incertezas.
Nesta situação, é compreensível que, além de abrir as portas das
igrejas e diversas entidades religiosas para o descontentamento e as
reivindicações populares, os próprios líderes católicos tenham assumido a
tarefa de convocar as mobilizações. Nesse caminho, em seu vídeo o arcebispo de
Maringá Anuar Battisti apela à população para "participar do dia 28 e
gritar pela dignidade." Diz que os fiéis devem colocar o ato "na
agenda e não deixar de erguer sua voz para contestar." Caso contrário,
acrescenta, "o prejuízo ficará para todos."
Já Dom Manoel Delson, de Campina Grande, usa o vídeo para fazer a
discussão de fundo sobre a Previdência. Não só questiona a necessidade de
mudanças no sistema público de aposentadorias. Ainda recorda que, caso fosse
mesmo preciso fazer alterações na Previdência, seria preciso atingir os
benefícios de quem ganha altos salários e embolsa pensões integrais, mas
"a reforma nada diz sobre isso."
O teste definitivo sobre a intensidade desse apoio a greve geral
será feito a partir da manhã de quarta-feira, 26, quando será aberta a Assembleia
Geral da CNBB, em Aparecida, São Paulo. Elaborada há um ano, a pauta do
encontro prevê um debate sobre Conjuntura Nacional, que irá abrir para espaço
para discussão sobre o dia 28 e seus desdobramentos. Pode-se prever -- o que é
natural num evento desse tipo -- uma ofensiva das lideranças alinhadas com o
governo Temer, que receberá espaço e atenção junto a mídia amiga. O efeito real
sobre as três centenas de bispos que estarão reunidos é bem menos provável.
"O que está sendo feito agora por padres e bispos reflete o sentimento
médio da Igreja hoje," disse ao 247 um médico que já completou meio século
de militância em círculos católicos. Ainda que provoquem questionamentos
internos, as resoluções cotidianas da CNBB não são decisões tomadas no vazio,
mas refletem a postura de seu Conselho-Geral, com 48 integrantes.
(*) - Paulo Moreira Leite é jornalista e escritor. Diretor de Brasil 247, em Brasília
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