31 de março: militares
consumam golpe contra Jango e a democracia
Tanques do Exército ocupam as ruas do Rio de Janeiro no golpe de 1964, iniciando o mais longo período de exceção do país (Foto: Arquivo Nacional)
Tanques nas ruas, população dividida e um presidente da
República acuado e sem apoio. Nesse cenário, há 50 anos, se iniciava no Brasil
o mais longo e duro período de ditadura do país, que perduraria 21 anos. Nas
primeiras horas do dia 31 de março de 1964, tropas comandadas pelo general
Olímpio Mourão partiram de Juiz de Fora (MG) em direção ao Rio de Janeiro
consumando um golpe há muito tempo planejado pelas forças militares.
Isolado, o então presidente da República João Goulart,
conhecido como Jango, pouco pôde fazer para evitar o golpe. Com a economia do
país em crise e sem forças para promover as reformas de base, principal
bandeira de seu governo, ele deixa Brasília rumo ao Rio Grande do Sul no dia 1º
de abril.
Alguns dias depois, e dando o golpe como irreversível, o
presidente parte com a família rumo ao Uruguai em um carro preto, escoltado por
militares que ainda mantinham lealdade à Constituição. Jango morre na Argentina
12 anos depois. Inicialmente apontada como infarto, a causa da morte de João
Goulart é investigada até hoje.
Para o doutor em história e professor da Universidade de
Brasília (UnB) Antônio Barbosa, os militares já haviam orquestrado uma espécie
de golpe contra a democracia brasileira três anos antes. Com a renúncia de
Jânio Quadros, em 1961, os militares atuaram para impedir a posse do vice,
Jango, e o Congresso Nacional aprovou a mudança de sistema de governo, que
passou do presidencialismo para o parlamentarismo, no qual o presidente da
República não detém a chefia de governo.
“[Os militares] permitiram que João Goulart chegasse ao poder
[em 1961], mas tiraram os poderes dele. Por isso, do dia 7 de setembro de 1961
até janeiro de 1963, quando houve o plebiscito e o não [ao parlamentarismo]
venceu, Jango teve os poderes limitados”, relembra.
Depois das eleições gerais de 1962, cujos resultados foram
influenciados pela injeção de recursos norte-americanos que buscava eleger
parlamentares favoráveis aos interesses daquele país e ainda influenciar os
meios de comunicação em favor das teses conservadoras, Jango fica isolado, sem
conseguir levar adiante as reformas de base.
“Você não imagina o que foi o país naquele período, a partir
de 1963, depois que os eleitos tomaram posse no Congresso Nacional, até 31 de
março de 1964. Foram coisas que os jovens de hoje nem conseguiriam imaginar”,
conta Barbosa.
“Nos últimos dois meses que antecederam o 31 de março, era
muito comum no país inteiro as aulas serem interrompidas, especialmente nas
escolas públicas, para as professoras levarem os alunos para rezar o terço. A
cada conjunto de dez Ave-Marias, se fazia uma exortação, que naquela época era
'Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, livrai-nos do comunismo, Amém'.
Era esse o ambiente, o clima.”
O temor dos militares de que o comunismo aflorasse no Brasil
foi uma das justificativas para o golpe. No entanto, para o professor da
Universidade Estadual Paulista (Unesp) Paulo Ribeiro da Cunha, o golpe foi
sendo construído ao longo dos anos pelos comandantes das Forças Armadas. “Em
1954, já foi uma tentativa, um preâmbulo, abortado, principalmente, pelo
suicídio de Getúlio Vargas. Mas, em seguida, tivemos várias tentativas de
golpe”, explica. A tese é reforçada por Antônio Barbosa: “Jango era um homem de
centro-esquerda, não era comunista, não era socialista”.
Dois momentos foram cruciais para fortalecer a linha golpista
das Forças Armadas e precipitar a derrubada da democracia: o comício de Jango
na Central do Brasil, na sexta-feira 13 de março de 1964, com o palanque
montado em frente ao Ministério da Guerra. Na ocasião, João Goulart fez um
discurso duro em defesa do mandato e das reformas de base, o que soou como uma
afronta aos militares. Uma semana depois, a resposta da direita veio com a
Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
Para Antônio Barbosa, havia dois projetos em luta, um para
reformar o capitalismo brasileiro e outro para modernizá-lo pela via
autoritária Elza Fiuza/Agência Brasil
“Os militares se sentiram apoiados. Mais de 500 mil pessoas
foram às ruas em São Paulo. Isso há 50 anos, sem internet e redes sociais. E
ali sim, se radicaliza, e os líderes, que há muito tempo preparavam um golpe,
perceberam que era o momento”, analisa Barbosa.
“O curioso é que foi em nome da democracia que se suprimiu a
democracia no país”, ressalta o coordenador do Curso de Especialização em
Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), Pio Penna.
Segundo Antonio Barbosa, ninguém se levantou para defender
João Goulart. “Foi uma revolução absolutamente sem sangue e sem tiro. O país
completamente mobilizado, ideologicamente falando. Mas não podemos esquecer que
o Brasil era um país de população com mais de 75% de analfabetos e mais de 95%
de religiosos que seguiam a Igreja Católica. E a igreja, naquele momento,
estava completamente imbuída da luta anticomunista. Padres, no país inteiro -
por dez anos eu vi isso - procurando alertar as pessoas de que o comunismo
estava chegando.”
O golpe definiu a vitória da opção conservadora em um país
que se desenvolvera ao longo do século 20, mas não havia modernizado suas
relações sociais.
“Diria que, no Brasil, no início dos anos 1960, havia dois
projetos em luta: um reformista, capitaneado por Goulart, que queria, na minha
opinião, oferecer uma face mais humana para o capitalismo brasileiro. De outro,
um projeto de modernização do capitalismo brasileiro, inserindo-o em escala
global, pela via politicamente autoritária. E quem venceu foi esse grupo.
Então, o regime de 1964 começa sem enganar ninguém: é um regime de exceção”,
lembra Barbosa.
Ao longo de 21 anos, cinco generais se sucedem no comando do
país, no que ficou conhecido como “anos de chumbo”. Uma geração política foi
suprimida pela ditadura, milhares de pessoas foram torturadas e mortas e o país
é devolvido à sociedade economicamente quebrado, vítima do endividamento
acumulado no período militar.
Jango só voltaria ao Brasil morto, no dia 7 de dezembro de
1976, para ser enterrado em São Borja, sua cidade natal. É o único presidente
da República que morreu no exílio. Em 1985, o colégio eleitoral elege Tancredo
Neves como o primeiro presidente civil desde 1964.
De Brasília, Ivan
Richard - Agência Brasil, 31/03/2014, às 08h14