Família, essa frágil embarcação!(continuação)
Por Padre Alfredo J. Gonçalves(*)
A
família é hoje uma das instituições mais batidas pelos ventos da chamada
pós-modernidade. Ventos furiosos, cínicos ou indiferentes. Além de trazerem em
suas asas o "canto enganoso da sereia”, costumam abalar de forma
irremediável os alicerces da "casa construída sobre a areia”. (Continuação da matéria editada, ontem, 05/06)
Desafios e potencialidades
Uma vez mais, convém retornar ao conceito de liberdade. A
liberdade é não apenas um dom de Deus e uma conquista da humanidade, mas também
um potencial de energias inesgotáveis. Em nenhuma hipótese, todavia, pode ser
desconectada de normas, leis, limites, renúncias e escolhas acertadas.
Faz um par indissociável com a responsabilidade. Um
exemplo simples e banal: não é difícil imaginar o terraço, aberto e livre, do
último andar de um alto edifício. A área, porém, não possui muros de qualquer
espécie. Tomemos uma criança de dois anos e a coloquemos sobre esse espaço.
"Você é livre, divirta-se”! Qual o resultado? Liberdade sem muros é
abismo, sinônimo de inevitável tragédia.
A imagem é extrema, caricatural, justamente para alertar
sobre os riscos de uma liberdade sem freios. E no entanto, não é exatamente
essa a concepção de liberdade que muitas vezes se vê veiculada pelo marketing,
a publicidade e a propaganda mais apelativa e desenfreada!
Em tempos não tão distantes, era comum afirmar que a
família constitui um jardim. Quando o terreno é sólido e sadio, fértil e bem
irrigado, no jardim nascem, crescem e desenvolvem-se plantas viçosas e
saudáveis. Folhas, flores e frutos – os mais belos – são a promessa da
casa/família. Cheira a romantismo? Sem dúvida, mas sem um mínimo de poesia e
imaginação, sem um mínimo de criatividade, sem o mínimo de cuidado e empenho, o
solo se torna vulnerável às pedras, espinhos e ervas daninhas.
Os resultados falam por si só: ao lado do matrimônio e da
família, deteriora-se igualmente a educação inicial e primordial. Somente o
potencial energético da liberdade, regulado pela ética da corresponsabilidade,
poderá reverter esses dados.
A família costuma ser o lugar privilegiado não só para os
primeiros balbucios, as primeiras palavras e os primeiros passos, mas também
para entrar em contato com as primeiras experiências, as primeiras relações
interpessoais e os primeiros valores (ou anti-valores). Hoje, com o
aprofundamento dos estudos de psicologia, sabemos o quanto essas primeiras
"aventuras” sejam decisivas para todo o resto da vida, em sentido negativo
ou positivo. Daí derivam traumas ou equilíbrio psico-social.
Ocorre que uma série de fatores de ordem socioeconômica e
político-cultural retirou da família a "tarefa” de educar a criança desde
o berço, seja porque os pais não estão preparados para os desafios das novas
gerações, seja porque encontram-se em condições difíceis, precárias e
inadequadas para semelhante compromisso. Crianças, adolescentes e jovens, mesmo
quando inseridas em uma família, nunca se sentiram tão órfãos, sós e perdidos!
Igualmente perdidos se sentem os pais diante das turbulências que rondam portas
e janelas de casa.
Ao mesmo tempo, porém, a família não foi substituída por
nenhuma outra instituição capacitada e idônea para assumir aquela tarefa. Com o
passar do tempo, gerou-se uma perigosa lacuna que se torna sempre mais
estridente, profunda e flagrante. O "lar infantil”, a creche, a escola e
as igrejas (entre outras instituições) tratam de levar a termo essa educação
"inicial e primordial”, mas de forma parcial e com "luvas de pelica”,
por um duplo motivo.
Por um lado, os educandos permanecem mais tempo em casa
ou pelas ruas, com demasiado tempo ocioso, do que em tais instituições; por
outro, verifica-se não raro uma vigilância excessiva por parte do Estado, o
qual, em grau nada desprezível, não somente se revela negligente quanto à
responsabilidade de preencher essa lacuna, mas ainda por cima, por vezes vezes
impede que outras entidades o tentem. Numa palavra, não faz e não deixa fazer!
O caminho das soluções
A referida educação "inicial e primordial” se
dificulta ainda mais quando levamos em conta as mudanças rápidas e profundas
ocorrem no interior da família moderna ou pós-moderna. A cada ano e a cada
década, ela se torna mais diversificada e complexa Mais do que família, no
singular, fala-se de famílias, no plural. Atualmente, as ciências sociais
colocam em cena variados tipos de núcleos familiares, com necessidades,
exigências e desafios especiais e específicos.
Além disso, com a crise da economia globalizada, o
desemprego crônico e as carências crescentes, as assimetrias sociais e
econômicas, junto com as migrações massivas, pulverizam não poucos núcleos
familiares. Resulta que, temporária ou definitivamente, rompem-se inclusive as
ligações de parentesco que ajudam a manter de pé as famílias mais debilitadas.
Qual a solução ou soluções? Em primeiro lugar, é preciso
tomar conhecimento das transformações em curso na sociedade contemporânea. A
elas, corresponde um novo leque no quadro das famílias, como também no contexto
do pluralismo cultural em que vivemos. Pluralismo que, dia-a-dia, vai abrindo
horizontes desconhecidos, descortinando novas formas de convivência familiar e
de parentesco.
A cada dia que passa, a criança encontrar-se-á com
amiguinhos e coleguinhas que vivem experiências distintas no interior de suas
casas. Por mais esforços que se façam para esconder isso dos "meninos e
meninas”, esse dado hoje encontra-se escancarado aos olhos de todos e todas.
Depois, faz-se urgente criar e/ou fortalecer instrumentos
e mecanismos necessários para devolver à célula familiar meios, apoio e
condições necessárias para manter o jardim preparado para as plantas que virão.
Sem tal preparação do terreno, as ervas daninhas tomam conta de todo campo.
Enfim, ao lado do grupo familiar, as instituições
governamentais ou privados podem estimular e desenvolver outras redes de
sustentabilidade desse grupo nuclear, o qual, bem ou mal, queiramos ou não,
segue sendo a base de um organismo social sem enfermidades crônicas.
Tanto o organismo de uma pessoa adulta, forte e saudável,
quanto o organismo de uma sociedade sadia, igualitária e equilibrada mergulham
suas raízes mas profundas na infância. E especialmente na infância remota: os
especialistas alertam para o fato de que os primeiros anos de vida, desde a
concepção, serão decisivos para o desenvolvimento integral e íntegro do ser
humano.
Esse broto, ao mesmo tempo frágil e forte, necessita
dessas raízes firmes na terra. Necessita igualmente de um contexto
sócio-histórico justo, fraterno e solidário, seja do ponto de vista
socioeconômico, seja do ponto de vista político e cultural.
Somente desse modo, sem medos nem traumas que o
paralisem, será capaz de erguer-se do chão para buscar a luz do sol e o azul infinito
do céu, como flor colorida e bela, aberta e livre. Ou como criança alegre e
saudável, que brinca, pula, sorri e respira a brisa suave que refresca a face
da terra.
(*) - Pe. Alfredo J. Gonçalves é
Assessor das Pastorais Sociais da Igreja Católica
De Adital, 05/06/2014, Republicação do blog, em 06/06/2015
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