sábado, 6 de junho de 2015

Crônica em dois tempos - Capítulo II

Família, essa frágil embarcação!(continuação)
Por Padre Alfredo J. Gonçalves(*)
A família é hoje uma das instituições mais batidas pelos ventos da chamada pós-modernidade. Ventos furiosos, cínicos ou indiferentes. Além de trazerem em suas asas o "canto enganoso da sereia”, costumam abalar de forma irremediável os alicerces da "casa construída sobre a areia”. (Continuação da matéria editada, ontem, 05/06)
Desafios e potencialidades
Uma vez mais, convém retornar ao conceito de liberdade. A liberdade é não apenas um dom de Deus e uma conquista da humanidade, mas também um potencial de energias inesgotáveis. Em nenhuma hipótese, todavia, pode ser desconectada de normas, leis, limites, renúncias e escolhas acertadas.
Faz um par indissociável com a responsabilidade. Um exemplo simples e banal: não é difícil imaginar o terraço, aberto e livre, do último andar de um alto edifício. A área, porém, não possui muros de qualquer espécie. Tomemos uma criança de dois anos e a coloquemos sobre esse espaço. "Você é livre, divirta-se”! Qual o resultado? Liberdade sem muros é abismo, sinônimo de inevitável tragédia.
A imagem é extrema, caricatural, justamente para alertar sobre os riscos de uma liberdade sem freios. E no entanto, não é exatamente essa a concepção de liberdade que muitas vezes se vê veiculada pelo marketing, a publicidade e a propaganda mais apelativa e desenfreada!
Em tempos não tão distantes, era comum afirmar que a família constitui um jardim. Quando o terreno é sólido e sadio, fértil e bem irrigado, no jardim nascem, crescem e desenvolvem-se plantas viçosas e saudáveis. Folhas, flores e frutos – os mais belos – são a promessa da casa/família. Cheira a romantismo? Sem dúvida, mas sem um mínimo de poesia e imaginação, sem um mínimo de criatividade, sem o mínimo de cuidado e empenho, o solo se torna vulnerável às pedras, espinhos e ervas daninhas.
Os resultados falam por si só: ao lado do matrimônio e da família, deteriora-se igualmente a educação inicial e primordial. Somente o potencial energético da liberdade, regulado pela ética da corresponsabilidade, poderá reverter esses dados.
A família costuma ser o lugar privilegiado não só para os primeiros balbucios, as primeiras palavras e os primeiros passos, mas também para entrar em contato com as primeiras experiências, as primeiras relações interpessoais e os primeiros valores (ou anti-valores). Hoje, com o aprofundamento dos estudos de psicologia, sabemos o quanto essas primeiras "aventuras” sejam decisivas para todo o resto da vida, em sentido negativo ou positivo. Daí derivam traumas ou equilíbrio psico-social.
Ocorre que uma série de fatores de ordem socioeconômica e político-cultural retirou da família a "tarefa” de educar a criança desde o berço, seja porque os pais não estão preparados para os desafios das novas gerações, seja porque encontram-se em condições difíceis, precárias e inadequadas para semelhante compromisso. Crianças, adolescentes e jovens, mesmo quando inseridas em uma família, nunca se sentiram tão órfãos, sós e perdidos! Igualmente perdidos se sentem os pais diante das turbulências que rondam portas e janelas de casa.
Ao mesmo tempo, porém, a família não foi substituída por nenhuma outra instituição capacitada e idônea para assumir aquela tarefa. Com o passar do tempo, gerou-se uma perigosa lacuna que se torna sempre mais estridente, profunda e flagrante. O "lar infantil”, a creche, a escola e as igrejas (entre outras instituições) tratam de levar a termo essa educação "inicial e primordial”, mas de forma parcial e com "luvas de pelica”, por um duplo motivo.
Por um lado, os educandos permanecem mais tempo em casa ou pelas ruas, com demasiado tempo ocioso, do que em tais instituições; por outro, verifica-se não raro uma vigilância excessiva por parte do Estado, o qual, em grau nada desprezível, não somente se revela negligente quanto à responsabilidade de preencher essa lacuna, mas ainda por cima, por vezes vezes impede que outras entidades o tentem. Numa palavra, não faz e não deixa fazer!
O caminho das soluções
A referida educação "inicial e primordial” se dificulta ainda mais quando levamos em conta as mudanças rápidas e profundas ocorrem no interior da família moderna ou pós-moderna. A cada ano e a cada década, ela se torna mais diversificada e complexa Mais do que família, no singular, fala-se de famílias, no plural. Atualmente, as ciências sociais colocam em cena variados tipos de núcleos familiares, com necessidades, exigências e desafios especiais e específicos.
Além disso, com a crise da economia globalizada, o desemprego crônico e as carências crescentes, as assimetrias sociais e econômicas, junto com as migrações massivas, pulverizam não poucos núcleos familiares. Resulta que, temporária ou definitivamente, rompem-se inclusive as ligações de parentesco que ajudam a manter de pé as famílias mais debilitadas.
Qual a solução ou soluções? Em primeiro lugar, é preciso tomar conhecimento das transformações em curso na sociedade contemporânea. A elas, corresponde um novo leque no quadro das famílias, como também no contexto do pluralismo cultural em que vivemos. Pluralismo que, dia-a-dia, vai abrindo horizontes desconhecidos, descortinando novas formas de convivência familiar e de parentesco.
A cada dia que passa, a criança encontrar-se-á com amiguinhos e coleguinhas que vivem experiências distintas no interior de suas casas. Por mais esforços que se façam para esconder isso dos "meninos e meninas”, esse dado hoje encontra-se escancarado aos olhos de todos e todas.
Depois, faz-se urgente criar e/ou fortalecer instrumentos e mecanismos necessários para devolver à célula familiar meios, apoio e condições necessárias para manter o jardim preparado para as plantas que virão. Sem tal preparação do terreno, as ervas daninhas tomam conta de todo campo.
Enfim, ao lado do grupo familiar, as instituições governamentais ou privados podem estimular e desenvolver outras redes de sustentabilidade desse grupo nuclear, o qual, bem ou mal, queiramos ou não, segue sendo a base de um organismo social sem enfermidades crônicas.
Tanto o organismo de uma pessoa adulta, forte e saudável, quanto o organismo de uma sociedade sadia, igualitária e equilibrada mergulham suas raízes mas profundas na infância. E especialmente na infância remota: os especialistas alertam para o fato de que os primeiros anos de vida, desde a concepção, serão decisivos para o desenvolvimento integral e íntegro do ser humano.
Esse broto, ao mesmo tempo frágil e forte, necessita dessas raízes firmes na terra. Necessita igualmente de um contexto sócio-histórico justo, fraterno e solidário, seja do ponto de vista socioeconômico, seja do ponto de vista político e cultural.
Somente desse modo, sem medos nem traumas que o paralisem, será capaz de erguer-se do chão para buscar a luz do sol e o azul infinito do céu, como flor colorida e bela, aberta e livre. Ou como criança alegre e saudável, que brinca, pula, sorri e respira a brisa suave que refresca a face da terra.
(*) - Pe. Alfredo J. Gonçalves é Assessor das Pastorais Sociais da Igreja Católica

De Adital, 05/06/2014, Republicação do blog, em 06/06/2015

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