Não é comentário esportivo, é racismo
A existência de um único treinador negro no mundial chamou a atenção de
parte da opinião pública e foi inclusive notícia entre os principais veículos
de comunicação no país. Além de ser o único comandante negro, Aliou Cissé,
técnico de Senegal, é também o profissional com a pior remuneração anual entre
os treinadores da competição.
O que a mídia esqueceu de abordar, porém, é o porquê Cissé é o único
negro e o técnico com pior salário da Copa.
A mídia também esqueceu de denunciar as manifestações racistas de
jornalistas de grandes emissoras durante as partidas de seleções africanas. O
racismo por aqui é tão naturalizado, que parece ser normal classificar o negro
como inocente ou desorganizado.
Ambos fatos, motivados pelo mesmo princípio racista, exigem uma reflexão
sobre o mercado de trabalho e as relações raciais no Brasil e no mundo.
O futebol não está a par da sociedade e é preciso lembrar que existe no
mundo uma política de supremacia branca que define quais grupos raciais são
“racionais” e quais são “emocionais”.
Inspirado na teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, Herbert
Spencer desenvolveu a teoria do evolucionismo social, conceito “científico” que
hierarquizava as raças. É essa tese que fortalece a ideia de que a raça branca
é superior porque é a representação da razão, enquanto a negra, a última entre
os grupos raciais do mundo, é identificada pela emoção.
A força do racismo é tão grande que o negro, mesmo reconhecido como
craque ou gênio, não é tido como capaz para pensar futebol. Por isso, Cissé é o
único treinador, papel que por excelência é a representação da racionalidade.
E é essa mesma lógica, que descreve o negro como o “corpo” e o branco
como a “mente”, que explica os comentários racistas de jornalistas durante os
jogos das seleções africanas no torneio. Vamos listar alguns.
Pouco organizados.
Apesar de talentosos e rápidos, negros não são capazes de se organizar
ou construir estratégias, o que os torna em presas fáceis diante da
inteligência europeia ou mesmo asiática.
Quando as seleções africanas perdem uma partida, a justificativa costuma
ser a falta de organização tática, não o fato de que alguns times africanos são
apenas piores do que os seus adversários.
A saída para esse problema, muitas vezes, é a contratação de um
treinador branco para tentar “organizar” a equipe com a racionalidade europeia.
Curioso é que a melhor equipe africana no torneio foi Senegal, a única
comandada por um negro.
Fortes.
Ressaltar a força do negro é, na mesma medida, apontar os demais grupos
como detentores da razão, em especial os brancos, e reafirmar o espaço do negro
de possuir apenas o corpo.
No imaginário social brasileiro, isso é bastante presente. O negro ainda
é visto como o escravo, ou seja, aquele sujeito que deve ser encarregado de
trabalhos braçais. Não à toa, ofícios manuais, que demandam o uso da força, são
destinados a negros, enquanto funções de comando, posições que exigem a
inteligência, são atribuídas a brancos.
Festivos.
Mesmo afirmações que aparentemente são positivas reforçam o lugar social
do negro. Quando comentaristas exaltam a alegria e a festa do africano, sujeito
envolto pela emoção, reforçam a ideia de que não cabe ao negro a função de
racionalizar, porque ele desempenha bem aquilo – a festa, a dança e o drible.
Inocentes.
Não é de hoje que essa afirmação infantiliza o africano ou
afrodescendente, e ao final, permite a continuidade da hierarquia entre o negro
e o branco.
A criança, que precisa ficar sob a guarda e a atenção dos adultos, ainda
não tem a total maturidade do ponto de vista racional. Ainda enquanto criança,
ela apenas sente, tem dificuldade para se expressar e precisa viver sob a
tutela do adulto.
No mundo do trabalho, é possível trocar a criança pelo negro, e o adulto
pelo branco. No esporte, a dinâmica se repete. É preciso que se tenha um branco
coordenando a ação do negro.
Times africanos.
As seleções de Senegal, Nigéria, Egito, Marrocos e Tunísia não parecem
ser times nacionais, mas sim equipes africanas – o continente parece ser uma
coisa única.
Por
Pedro Borges, do Alma Preta, com Yahoo Esportes, em 29/06/2018, às 09h34
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