quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Retrospectiva da década:

Como o populismo de direita chegou ao topo do mundo
 
Donald Trump, presidente dos EUA (AP Photo/Evan Vucci)
Um dos episódios mais dramáticos da série House of Cards termina com o fictício presidente Frank Underwood declarando guerra aos terroristas, depois de uma negociação de sequestro. A ideia do governante não é salvar os Estados Unidos de uma ameaça, mas desviar a atenção de uma reportagem que o compromete.
Em uma das cenas, a primeira-dama (e parceira nos crimes do marido) Claire Underwood diz que cansou de tentar ganhar o coração das pessoas. “Nós podemos trabalhar com o medo”, sugere ela. Assim, com uma guerra — que poderia ter sido evitada — em andamento, o episódio termina com um aviso ameaçador de Frank aos espectadores da série: “Nós não nos submetemos ao terror, nós o criamos”, em clara referência à Guerra ao Terror, de George W. Bush, nos anos 2000.
Quase duas décadas depois dos ataques de 11 de setembro de 2001, homens-bomba parecem não ser mais uma preocupação recorrente em solo norte-americano. Mas o medo continua sendo um commoditie disputado entre os políticos. Nos últimos dez anos, ele só mudou de aparência — e ajudou no fortalecimento de regimes conservadores de extrema direita. 
Uma das fôrmas que moldaram o medo na segunda década do século 21 foi criada antes mesmo de seu início. “Em parte, o fortalecimento dos governos populistas de direita tem a ver com a crise financeira de 2008”, explica Eduardo Mello, professor de política e relações internacionais da FGV. “Esse fortalecimento é ligado ao aumento do desemprego, da pobreza, da desigualdade e à resposta que alguns países deram à crise. Existe um contingente muito grande de pessoas que sofreu impacto tanto do avanço da automação e da tecnologia (que reduziu empregos e salários) quanto da crise em si, formando um ambiente perfeito para o surgimento desses movimentos populistas.” 
Se em House of Cards os personagens se aproveitam do medo de terroristas para manipular os eleitores, na vida real, populistas contemporâneos manipulam através do medo da instabilidade financeira, além da perda de emprego e benefícios sociais. Isso ajuda a explicar o preconceito contra um dos bodes expiatórios mais convenientes para políticos nacionalistas: os imigrantes, que, em 2015, fugindo em sua maioria de áreas de conflito como a Síria e o Afeganistão, deflagraram a maior crise migratória na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. 
“Em geral, o primeiro culpado evidente é encontrado fora do país. Assim, nada mais lógico que Donald Trump culpar a China pelos problemas econômicos dos Estados Unidos”, escreveu o cientista político alemão Yascha Mounk, no livro “O Povo Contra a Democracia”. “Tampouco deveria causar surpresa que ele aproveite dos medos das pessoas e alegue que os Estados Unidos estão sendo tomados por estupradores (mexicanos) e terroristas (muçulmanos).” 
Não é a toa que a escritora Audre Lorde define o medo como “um país em que nos emitem um passaporte ao nascer e esperam que nunca busquemos a cidadania em outro lugar”. É como se o medo nos aprisionasse em suas fronteiras metafóricas, mas a ascensão de regimes conservadores da extrema direita provam que a metáfora pode ser real. No caso da Europa, o passaporte para esse pavoroso “país” foi emitido mais cedo do que nos Estados Unidos, fazendo com que líderes como o húngaro Viktor Orbán, eleito em 2010, pavimentassem o caminho para a chegada de governantes como Donald Trump, a partir de 2016. 
 
Em uma década de discursos xenófobos, Orbán transformou a Hungria, um país que já foi proclamado por cientistas políticos como uma democracia consolidada e vibrante, em uma autocracia nebulosa. No mesmo período, na Europa, assistimos também ao crescimento vertiginoso de partidos de extrema direita com forte retórica anti-imigração, como a Liga, na Itália; o PiS (Partido da Lei e Justiça), na Polônia; o AfD (Alternativa para a Alemanha), na Alemanha; e o Vox, na Espanha. Além disso, também é impossível negar o apelo nacionalista de políticos como Nigel Farage, líder do Partido do Brexit, na Inglaterra, que defende a saída do país do bloco europeu. 
Olhando de longe, a França de Emanuel Macron, que tem um sistema político diferente dos países vizinhos, parece até uma ilha democrática cercada por um oceano conservador, depois que conseguiu afastar do poder o partido de extrema direita de Marine Le Pen. “A França é o único país da Europa que tem um sistema presidencial como os EUA”, explica Eduardo Mello, da FGV. “Le Pen virou uma grande força no Parlamento, mas não conseguiu a presidência porque, no segundo turno, todos os partidos se uniram contra ela para evitar a chegada da direita populista no poder. Essa é uma característica do sistema presidencial.” 
Por Nathan Fernandes, Yahoo Notícias, publicado em 05/12/2019

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