Como o populismo de direita chegou ao topo do mundo
Donald Trump, presidente dos EUA (AP Photo/Evan Vucci)
Um dos episódios mais dramáticos da série House of Cards termina com o
fictício presidente Frank Underwood declarando guerra aos terroristas, depois
de uma negociação de sequestro. A ideia do governante não é salvar os Estados
Unidos de uma ameaça, mas desviar a atenção de uma reportagem que o compromete.
Em uma das cenas, a primeira-dama (e parceira nos crimes do marido)
Claire Underwood diz que cansou de tentar ganhar o coração das pessoas. “Nós
podemos trabalhar com o medo”, sugere ela. Assim, com uma guerra — que poderia
ter sido evitada — em andamento, o episódio termina com um aviso ameaçador de
Frank aos espectadores da série: “Nós não nos submetemos ao terror, nós o
criamos”, em clara referência à Guerra ao Terror, de George W. Bush, nos anos
2000.
Quase duas décadas depois dos ataques de 11 de setembro de 2001,
homens-bomba parecem não ser mais uma preocupação recorrente em solo
norte-americano. Mas o medo continua sendo um commoditie disputado entre os
políticos. Nos últimos dez anos, ele só mudou de aparência — e ajudou no
fortalecimento de regimes conservadores de extrema direita.
Uma das fôrmas que moldaram o medo na segunda década do século 21 foi
criada antes mesmo de seu início. “Em parte, o fortalecimento dos governos
populistas de direita tem a ver com a crise financeira de 2008”, explica
Eduardo Mello, professor de política e relações internacionais da FGV. “Esse
fortalecimento é ligado ao aumento do desemprego, da pobreza, da desigualdade e
à resposta que alguns países deram à crise. Existe um contingente muito grande
de pessoas que sofreu impacto tanto do avanço da automação e da tecnologia (que
reduziu empregos e salários) quanto da crise em si, formando um ambiente
perfeito para o surgimento desses movimentos populistas.”
Se em House of Cards os personagens se aproveitam do medo de terroristas
para manipular os eleitores, na vida real, populistas contemporâneos manipulam
através do medo da instabilidade financeira, além da perda de emprego e
benefícios sociais. Isso ajuda a explicar o preconceito contra um dos bodes
expiatórios mais convenientes para políticos nacionalistas: os imigrantes, que,
em 2015, fugindo em sua maioria de áreas de conflito como a Síria e o
Afeganistão, deflagraram a maior crise migratória na Europa desde a Segunda
Guerra Mundial.
“Em geral, o primeiro culpado evidente é encontrado fora do país. Assim,
nada mais lógico que Donald Trump culpar a China pelos problemas
econômicos dos Estados Unidos”, escreveu o cientista político alemão Yascha
Mounk, no livro “O Povo Contra a Democracia”. “Tampouco deveria causar surpresa
que ele aproveite dos medos das pessoas e alegue que os Estados Unidos estão
sendo tomados por estupradores (mexicanos) e terroristas (muçulmanos).”
Não é a toa que a escritora Audre Lorde define o medo como “um país em
que nos emitem um passaporte ao nascer e esperam que nunca busquemos a cidadania
em outro lugar”. É como se o medo nos aprisionasse em suas fronteiras
metafóricas, mas a ascensão de regimes conservadores da extrema direita provam
que a metáfora pode ser real. No caso da Europa, o passaporte para esse
pavoroso “país” foi emitido mais cedo do que nos Estados Unidos, fazendo com
que líderes como o húngaro Viktor Orbán, eleito em 2010, pavimentassem o
caminho para a chegada de governantes como Donald Trump, a partir de
2016.
Em uma década de discursos xenófobos, Orbán transformou a Hungria, um
país que já foi proclamado por cientistas políticos como uma democracia
consolidada e vibrante, em uma autocracia nebulosa. No mesmo período, na
Europa, assistimos também ao crescimento vertiginoso de partidos de extrema
direita com forte retórica anti-imigração, como a Liga, na Itália; o PiS
(Partido da Lei e Justiça), na Polônia; o AfD (Alternativa para a Alemanha), na
Alemanha; e o Vox, na Espanha. Além disso, também é impossível negar o apelo
nacionalista de políticos como Nigel Farage, líder do Partido do Brexit, na
Inglaterra, que defende a saída do país do bloco europeu.
Olhando de longe, a França de Emanuel Macron, que tem um sistema
político diferente dos países vizinhos, parece até uma ilha democrática cercada
por um oceano conservador, depois que conseguiu afastar do poder o partido de
extrema direita de Marine Le Pen. “A França é o único país da Europa que tem um
sistema presidencial como os EUA”, explica Eduardo Mello, da FGV. “Le Pen virou
uma grande força no Parlamento, mas não conseguiu a presidência porque, no
segundo turno, todos os partidos se uniram contra ela para evitar a chegada da
direita populista no poder. Essa é uma característica do sistema
presidencial.”
Por Nathan Fernandes, Yahoo
Notícias, publicado em 05/12/2019
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