Julgamento de Dilma:
ideólogos das “pedaladas” saem chamuscados
Por Tereza Cruvinel (*)
O primeiro dia do julgamento da
presidente Dilma confirmou a natureza do processo: foi calculadamente fundado
em acusações técnicas e vem sendo conduzido por um discurso que não permite à
população entender de quê mesmo a presidente é acusada. Seus defensores,
entretanto, conseguiram ontem uma vitória moral e política importante com a
desqualificação das duas primeiras testemunhas de acusação. A primeira, o
procurador de contas Julio Marcelo, autor da representação contra o governo em
2014, da qual originou-se o conceito de “pedaladas fiscais”, foi rebaixado à
condição de informante, por conta de sua postura militante contra o governo
Dilma, revelada em redes sociais. Já o auditor federal do TCU, Antonio Carlos
Costa D'Ávila, confirmou, em resposta ao senador Randolfe Rodrigues, que
auxiliou o procurador a elaborar sua representação, que depois gerou uma
auditoria coordenada por ele mesmo. “Isso é estarrecedor. É como se o juiz
auxiliasse o advogado a escrever a petição que irá julgar!”, resumiu o advogado
de Dilma, José Eduardo Cardozo.
A confissão, que depois ele
tentou consertar, dizendo ter apenas lido a petição, como especialista que é no
assunto, deve gerar uma ação da defesa contra esta “dobradinha” eticamente
discutível, que viola os códigos de conduta tanto do Ministério Público como do
TCU. O que Cardozo e os senadores que apoiam Dilma conseguiram ontem, com as
intervenções de Vanessa Grazziotin, Gleisi Hoffmann, Lindberg Farias, Kátia
Abreu, Jorge Viana e outros mais, além de Randolfe, foi a caracterização das
“pedaladas” como uma criação conceitual destinada a fundamentar uma acusação
contra Dilma.
Ainda que nenhum voto seja virado, Julio Marcelo e D'Ávila,
depois da sessão de ontem, passarão à História como os “construtores” ideológicos
do “crime”. Desta construção se apropriaram os advogados Janaina Paschoal e
Reale Júnior, aliciando Helio Bicudo, para apresentar o pedido de impeachment
acolhido por Eduardo Cunha depois que o PT decidiu votar a favor da abertura de
seu processo de cassação no Conselho de Ética da Câmara.
A ideia de que o governo Dilma
pedalava para maquiar as contas tomou forma na auditoria decorrente da
representação do procurador, coordenada pelo auditor. Os resultados foram sendo
passados para a imprensa econômica e em breve a expressão “pedaladas”
popularizou-se e começou a pautar o debate econômico. D'Ávila, nesta época,
chegou a ser chamado de “caçador de pedaladas”. A ocorrência da “dobradinha”
entre eles, entretanto, só foi conhecida ontem, a partir da resposta à pergunta
do senador Randolfe. Foi esta construção, e a cunhagem de uma expressão de mais
fácil compreensão - e não um suposto caos fiscal - que gerou a crise de
desconfiança, acusou Cardozo ao final da sessão. No final, o auditor deixou sem
resposta uma boa pergunta de Cardozo: Assim como ele “ajudou” o procurador na
representação apenas por ser especialista, teria palpitado também sobre a
defesa de Dilma na auditoria, se Cardozo, que a elaborou juntamente com a AGU,
tivesse solicitado? D'Ávila fez rodeios verbais e não respondeu. Claro que não,
seu negócio naquele tempo era fortalecer sua criação teórica, a ideia das
pedaladas como crime.
O que prevaleceu ontem foi o
discurso tecnicista que bem convém a um processo que exclui o povo e constitui
o que foi definido pelo historiador José Honorio Rodrigues como uma “pactuação
por cima!”, prática recorrente das elites brasileiras. Os dois técnicos
repetiram à exaustão a tese central da acusação: Dilma violou a Lei de
Responsabilidade Fiscal ao atrasar, em 2015, repasses devidos pelo Tesouro ao
Banco do Brasil pelos empréstimos com juros subsidiados do Plano Safra. Isso
caracterizou operações de crédito, vedadas pela lei. Ela não pode responder
pelo ocorrido em 2014, ano que faz parte de mandato já encerrado, mas nele as
pedaladas envolveram outras políticas públicas e os atrasos foram mais
vultosos. A revelação do descalabro, disseram ambos, minou a credibilidade
econômica do governo, gerando a crise econômica.
Este discurso aparentemente
lógico foi bombardeado pelos senadores pró-Dilma em seguidas intervenções, com
questionamentos já conhecidos e que, mais uma vez não foram respondidos. Ou o
foram com evasivas. Por exemplo:
- Por que então os governos do
passado, que adotaram as mesmas práticas, não foram denunciados? O TCU então
prevaricou?
- O que acontecerá com os 17
governadores pedalantes da atualidade?
- Qual o critério para distinguir
uma “operação de crédito”? Ambos disseram que as do passado não podem ser
consideradas como tal. O senador Anastasia, relator na comissão especial,
afirmou que era o montante de recursos, muito maior no governo Dilma. Não,
disseram eles, é o tempo de atraso. Não conseguiram, entretanto, definir com
precisão a partir de quanto tempo de atraso a pedalada vira operação de crédito.
Para Anastasia, um prazo médio de seis meses. Segundo D'Ávila, tal prazo deve
seguir “a lógica intrínseca do Plano Safra”. Entendeu? Nem eu.
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- Em relação às pedaladas a
presidente não teve qualquer participação direta. E no entanto, se foi crime,
ela não teve cúmplices? Não há outros responsáveis a serem punidos? Se o
julgamento fosse jurídico e técnico, e não político, se as cartas não
estivessem marcadas, muitos senadores teriam reconsiderado ontem a decisão de
votar pela condenação de Dilma, tão fortes foram a fragilidades expostas da
acusação.
E tal fragilidade era reiterada
pela demonstração de uma ignorância oceânica sobre o tema pela advogada Janaína
Paschoal, com suas perguntas rasas ao informante e à testemunha. Eles mesmos
tiveram que corrigir suas gafes, explicando, por exemplo, que “cortes” em 2014
não teriam afetado a execução orçamentária de 2015, como ele deu a entender que
supunha. Quis saber quantos órgãos foram envolvidos em pedaladas quando todo
mundo sabe que, em 2015, o governo só ficou inadimplente no caso do Plano
Safra. Fez outras perguntas tolas demais para quem está ajudando a derrubar uma
presidente da República com seu pedido de impeachment baseado no assunto que
conhece tão pouco.
Hoje, o circo continua.
(*) – Tereza Cruvinel é
uma das mais acreditadas jornalistas políticas do País. Artigo publicado em
Brasil 247, de 26/08/2016
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